quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Guerra e paz

O Sr. Huppert, um amigo especialíssimo, dono de um antiquário próximo daqui, passou a frequentar o cabaré desde a sua abertura. Ele vem sempre na hora do almoço, quando fecha sua loja para a sesta, período esse que ele cumpre bem acordado, dançando e dando cambalhotas quando há espaço suficiente para isso.
Hoje ele me trouxe um presente maravilhoso: um piano cocktail, fabricado no ano de 1964, mas funcionando perfeitamente. Ainda estou estudando o melhor lugar para acomodá-lo. Devo dizer que o presente é típico da generosidade do Sr. Huppert, mas que também pode (e deve) ser um modo de ele se desculpar pelo mau comportamento de ontem.
Quem o conhece sabe que quando ele bebe e se empolga numa pista de dança costuma soltar assobios ultra-estridentes, e isso já fez com que ele chegasse a ser expulso de algumas boates.
O incidente não foi tão grave assim. Estava Séverine K. aborrecida pelo atraso de seu amante (ele tem dentes de ouro), quando o Sr. Huppert emitiu um dos seus sons ensurdecedores.
Não me lembro de já ter visto a moça tão nervosa. Transtornada, ela ameaçou ir embora e nunca mais voltar, ao mesmo tempo em que me mostrava a mancha do drink derramado em seu casaco no momento do susto. Mas consegui acalmá-la e tive a idéia de mandar seu sobretudo para a tinturaria imediatamente. Ela agradeceu e permaneceu no balcão bebericando um novo daikiri oferecido por conta da casa.
Voltemos para o dia de hoje. Após sugerir o mezanino como o melhor espaço para o piano cocktail, o Sr. Huppert foi em direção a Séverine que tinha acabado de chegar e ainda nem tirado os óculos escuros.
Inicialmente fiquei um pouco tenso com essa aproximação, mas logo vi que ele a fez sorrir. Reparei também que ela falou três ou quatro palavras e balançou a cabeça como sinal de quem nega alguma coisa (que ainda estivesse com raiva dele, imagino).
Minutos depois o Sr. Huppert e Séverine já estão dançando como melhores amigos, ela colocando um dos seus brincos na orelha esquerda dele, ambos rindo escandalosamente. A música que anima a brincadeira é “Hit the road Jack”, na voz de Shirley Horn.
De repente, o Sr. Huppert leva os dedos indicadores à boca ameaçando dar um daqueles assobios. Em resposta à provocação, Séverine lhe dá um tapinha indolor no ombro.
O telefone do caixa toca. É o “boca de ouro”. Cochichando, ele me pede que cancele a reserva da mesa 15, enquanto outros homens gritam palavrões ao fundo. Desconfio que ele seja bandido.

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